Na 3af, 5/11, Dia da Cultura e da Língua Portuguesa, aconteceu o I Forum sobre Intolerância Religiosa e Liberdades, no qual representei a APTR (Associação de Produtores de Teatro do Rio) a pedido do Eduardo Barata, que a preside. Segue aqui a memória da minha apresentação:
Agradecemos o convite do CEAP, e a todas as formas de existência (no sentido atribuído por Pelbart) formas de existência de Luz, de Potência, de Fraternidade e Solidariedade. Afinal, como Shakespeare faz Hamlet dizer a Horácio: ”Há mais coisas no céu e na terra, do que foram sonhadas na sua filosofia”.
Cumprimento meus companheiros de mesa, Marcelo Alonso, Renato Emerson, Helena, cumprimento os distintos pensadores aqui presentes. Na tradição da Arte, abrimos mão dos títulos ao nos tratarmos, por favor, não considerem isso um desrespeito. Até porque é uma honra estar entre vocês.
Eu sou Maria do Rosário, desde pequena me chamam de Duaia, é como sou mais conhecida. Já que sou artista, me apresento com um pequeno poema.
Eu sou brasileira da paz mundial,
mesmo que não saiba se, no meu caso,
a mescla de culturas se deu em paz.
Trago narrativas perdidas de índios, africanos, europeus e orientais (tenho no sangue árabes e judeus).
Hemácias misturadas que sabem sambar e gostam de farinha de mandioca.
Que pulsam e amam essa terra desde há muito.
Eu Sou Brasileira.
Hoje, aqui, represento a APTR (Associação de Produtores de Teatro do Rio) a pedido do Eduardo Barata, que a preside, talvez pela experiência que tive em nove anos com comunidades no Museu da Vida/Fiocruz, relacionando Arte e Ciência.
A tônica desta participação é a escuta ativa, em resposta à generosa participação do Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos em duas reuniões da APTR. Que este seja um caminho para a “construção de pontes” mencionada por ele. Entendo que na Associação certamente temos um caleidoscópio de crenças (e não-crenças), práticas de espiritualidade e suas traduções para a cena, que se efetivam respeitando a diversidade. E que consideramos necessário que a Constituição seja respeitada, aqui destacando o Artigo 5º e seus incisos VI a IX, que leio a seguir, comentando alguns:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Quanto a este inciso, podemos compará-lo ao da Constituição de 1824, apresentado pelo Prof. Dr. Renato Emerson dos Santos, na qual “a Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. Já na Constituição de 1891, isso mudou para: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou dos Estados.
Portanto, a violência explícita ou difusa aos espaços de culto, aos praticantes, aos geo símbolos, aqui enunciados pelo Prof. Dr. Marcelo Alonso Morais, em sua pesquisa sobre a Umbanda, são, além de desrespeitosos, claramente inconstitucionais.
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
Quanto a este ponto, há relatos da dificuldade de acesso em alguns hospitais, dependendo da religião do visitante, não sendo objetivamente anunciado o verdadeiro motivo desta dificuldade, o que pode ser um traço de discriminação velada.
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Neste ponto, especificamente, se situam os artistas, cientistas, comunicadores e todos aqueles que tem interlocução com Arte, Ciência, Comunicação. Ou seja, toda a população, e não apenas os profissionais ligados a estas atividades, são prejudicados na ausência da liberdade prevista em lei. Porque ao serem cortados editais, orçamentos, estabelecidos manuais restritivos, inúmeras iniciativas deixam de se concretizar. Ingrid Silva, estrela brasileira do Dance Theatre of Harlem, que teve sua carreira iniciada no Projeto Dançando para não Dançar, de Thereza Aguilar hoje sem patrocínio diz que “pensa quantas estão deixando de ser (bailarinas?)”.
E volta a ser necessário afirmar o óbvio, que em Belo Horizonte foi recitado em forma de oração, pelo povo na praça, durante manifestação. Porque conforme todos temos observado, há um fenômeno não totalmente compreensível que se espalha. Ivanir destacou que o fenômeno ainda não se cristalizou, mas que pode se cristalizar. Portanto urge agir, sem perdermos nossos valores de criatividade, brasilidade, irreverência, perseverança, originalidade.
Gostaria de exibir um vídeo de 2’ 41” elaborado pela APTR, que traça a linha do tempo recente de fenômenos que afetam a liberdade de expressão, e se manifestam de forma explícita ou velada. Infelizmente o vídeo já pode ser atualizado pois já há mais relatos. E sabemos que nem todos relatam as “sugestões” de cortes, adaptações e substituições que lhes são feitas sem dar motivo.
Fizemos um seminário na APTR, para refletir sobre esse fenômeno da censura, e entre os poucos e ilustres convidados, contamos o Pastor Henrique e o Babalawô, Prof Dr Ivanir dos Santos em diferentes reuniões. Compilei algumas reflexões que fizeram e as trago assim, em potência para que tenham também suas formas de existência aqui nesta atmosfera rica para reflexão.
Pastor Henrique: “A espiritualidade é tão antiga quanto a humanidade – é a poesia que se faz à alma quanto ao chamado que é existir. / O namoro apaixonado entre a existência e a angústia apontando para a transcendência./ Somos um perigo, já que Arte é a interpelação do presente para romper com violências do passado pela intuição de futuro mais livre e mais pleno. Nosso dogma é o futuro. E o futuro é incerto. É preciso muita inteligência e Arte, muito afeto e respeito ao povo”
Babalawô Prof. Dr. Ivanir dos Santos: “Não dá para entender liberdade de expressão sem liberdade de expressão religiosa. O campo popular sempre passou perrengue e resiste. Há a necessidade de construir pontes. A Solidariedade Sincera é fundamental.”
Frente à menção de futuro, feita pelo Pastor Henrique e ao perrengue no campo popular que o Babalawô Ivanir dos Santos pontua, é impossível não se referir também a tudo o que vem acontecendo com as populações desfavorecidas e com a natureza (Joaquim Assis disse que o problema aumentou quando o ser humano parou de dizer natureza e passou a dizer meio-ambiente e complementa dizendo que tem saudade de quando o meio ambiente era inteiro).
Nas duas falas, a tônica é o respeito à diversidade, a compreensão do outro para esta construção de pontes, e o apelo à solidariedade. E sempre penso porque nos contentamos com o termo tolerância no lugar do termo respeito? A tolerância remete a uma espécie de hierarquia, um lugar de onde se vê o outro em situação menor, vem do latim tolerare, suportar, sustentar. O respeito, é recíproco, lado a lado, vem de respectus, olhar outra vez. Complemento com Milton Santos, quando diz que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Iniciativas como a Pastor Nehemias Marien (RIP), da Igreja Evangélica Bethesda, que construía pontes incessantemente, e de tantos outros, mostram que é possível.
Finalizo com o trecho de uma música que talvez alguns aqui conheçam, de João Bosco, é o final de “O Bêbado e a Equilibrista”, que menciona um pensador do Brasil que também nos faz falta, o irmão do Henfil, Herbert de Souza. Quem conhecer e quiser cantar junto, só vai aumentar a potência de que tanto precisamos para seguir transformando para melhor o mundo, já que, como diz Paulo na Carta aos Coríntios, sem Amor, nada se aproveita.
“Mas sei, que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a Esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a Esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista tem que continuar”